terça-feira, 28 de novembro de 2023

20 DE NOVEMBRO É COMEMORAÇÃO OU LUTA?

 



                                               Ítalo do Couto Mantovani*

 

Os conservadores escravistas entendiam que a extinção da escravidão viria naturalmente, acreditavam ter feito, com as Leis do Ventre Livre e do Sexagenário, o máximo de concessões.  Os cálculos mais otimistas indicavam que a escravidão se findaria por volta de 1930, com a morte “natural”. Pensamento que mostra como o Brasil é um país em débito com a própria história. 135 anos depois da abolição da escravidão, a afirmação da igualdade racial continua demandando ações de reconhecimento. Essa pauta não pode ficar de fora do campo da Segurança Pública, necessitando reflexões e debates mais técnicos do que realmente precisamos fazer.

Barão de Cotegipe, ao cumprimentar a princesa Isabel, pela Lei Áurea, falou uma frase de efeito: “O que pode valer um trono diante da liberdade?”. Liberdade? Conforme dados do Datasus, entre 2002 e 2021, 720.927 pessoas negras foram assassinadas no Brasil. 99 negros por dia. Ao longo de 20 anos. Negros representam 71% de todas as vítimas de assassinato no Brasil no período. Somente em 2021, 36.922 pessoas negras foram mortas. Um país que já teve como slogan do Governo Federal “Um País de Todos” tem dados mais alarmantes quando se observa a faixa etária. As novas gerações negras são também vítimas preferenciais das mortes violentas. Segundo dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dentre as crianças de até 11 anos vítimas de homicídio, 67,1% eram negras. Entre os adolescentes de 12 a 17 vítimas de homicídio, 85,1% eram negros. A violência letal tem cor e endereço certos no Brasil e acomete de modo majoritário e extremamente desproporcional, jovens negros pobres e periféricos. Além disso, em 2022 56,8% das vítimas de estupro (incluindo estupro de vulnerável) eram negras e 56,2% das vítimas com até 13 anos eram negras. As marcas do racismo aparecem ainda, na dinâmica da Justiça Criminal e do Sistema Prisional. Em 2022, o Brasil superou a marca de 832 mil pessoas, compondo a sua população carcerária (FBSP, 2023). No recorte racial, a proporção de pessoas negras encarceradas alcançou 68,2% desse total (FBSP, 2023). 

Por outro lado, negros são minoria entre os ocupantes dos cargos mais altos das polícias, cujas condições de trabalho bastante diferentes daquelas aqui mencionadas. Conforme dados da SENASP/PNUD, em 2009, negros eram 48,9% dos agentes da polícia militar, enquanto brancos somavam 48,7%. Já entre os delegados, negros somavam 28% enquanto brancos somavam 70,9%. Nas polícias militares, negros constituíam 58,1% dos praças, enquanto brancos somavam 39,6%. Entre os oficiais, contudo, negros somavam 47%, enquanto brancos constituíam 51%. As desigualdades raciais inerentes à estruturação hierárquica e à distribuição de cargos e salários das polícias vulnerabiliza negros porque são eles que irão ocupar as posições mais baixas (inclusive no interior dos grupos hierárquicos mais altos) e que aportam menos oportunidades no interior das organizações policiais.

Não é possível falarmos de segurança pública contornando a vulnerabilidade extrema a que está sendo submetida à população negra. O caminho que nos levará a este futuro ativamente antirracista é, portanto, o de superação das políticas universalistas, que não promovem direitos de grupos demográficos distintos na mesma medida justamente porque tratam como iguais aqueles cujas demandas e necessidades são distintas.

Pela Rede de Observatórios em Segurança Pública, ao menos cinco pessoas negras foram mortas por dia em ações policiais, em 2021. Foram 3.290 mortes em operações policiais na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. 65% dessas vítimas (2.154) eram negras. O estado de São Paulo que apresentou quedas significativas nos últimos anos, devido ao uso de câmeras nos uniformes dos policiais começa apresentar crescimento nesse ano de 2023. Dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mostraram que a letalidade policial aumentou no primeiro semestre de 2023. Comparado com o mesmo período do ano passado, houve um crescimento de 9,4%. Nos primeiros seis meses de 2023, foram 221 mortes policiais, contra 202 do primeiro semestre de 2022. O uso de câmeras nos uniformes dos agentes fez os números de mortes provocadas por esses profissionais despencarem, mas a cor dos mortos seguiu inalterada: 69% eram negros. Uma pessoa negra é morta a cada 72 horas.

É preciso elevar o antirracismo para além do mero discurso. Não é possível falarmos de segurança pública contornando a vulnerabilidade extrema a que está sendo submetida a população negra. Recortes anteriormente analisados mostram que é robusta a persistência do racismo, a despeito de estarmos em um país que se enegrece a olhos vistos. A população brasileira soma 56% de negros, indicando que mais pessoas passaram a ser assumir pretas ou pardas nos levantamentos do IBGE (2023). Porém, ser negro no Brasil ainda é fato que aprofunda desigualdades e, perversamente, exclui do usufruto de direitos fundamentais. Não adianta achar que mais policiais mais investimentos em segurança, mais viatura, mais armamento resolverá a nossa percepção de segurança. Está tudo interligado, enquanto não entendermos que nunca houve concessão, mas sempre luta em busca de uma árdua conquista o país não vai ser para ninguém.

 

v  Diretor da Divisão de Estudos e Monitoramento da Coordenadoria da Atividade

Delegada – Secretaria de Governo Municipal da Cidade de São Paulo

Formado em Gestão de Políticas Públicas pela USP

Mestre em Gestão e Desenvolvimento Regional

Professor de Cursinho pré-vestibular em São Paulo

Contato: italocmantovani@gmail.com

 

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