Ítalo
do Couto Mantovani*
Os
conservadores escravistas entendiam que a extinção da escravidão viria
naturalmente, acreditavam ter feito, com as Leis do Ventre Livre e do
Sexagenário, o máximo de concessões. Os
cálculos mais otimistas indicavam que a escravidão se findaria por volta de
1930, com a morte “natural”. Pensamento que mostra como o Brasil é um país em
débito com a própria história. 135 anos depois da abolição da escravidão, a
afirmação da igualdade racial continua demandando ações de reconhecimento. Essa
pauta não pode ficar de fora do campo da Segurança Pública, necessitando
reflexões e debates mais técnicos do que realmente precisamos fazer.
Barão
de Cotegipe, ao cumprimentar a princesa Isabel, pela Lei Áurea, falou uma frase
de efeito: “O que pode valer um trono diante da liberdade?”. Liberdade?
Conforme dados do Datasus, entre 2002 e 2021, 720.927 pessoas negras foram
assassinadas no Brasil. 99 negros por dia. Ao longo de 20 anos. Negros
representam 71% de todas as vítimas de assassinato no Brasil no período.
Somente em 2021, 36.922 pessoas negras foram mortas. Um país que já teve como
slogan do Governo Federal “Um País de Todos” tem dados mais alarmantes quando
se observa a faixa etária. As novas gerações negras são também vítimas
preferenciais das mortes violentas. Segundo dados do 17º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, dentre as crianças de até 11 anos vítimas de homicídio,
67,1% eram negras. Entre os adolescentes de 12 a 17 vítimas de homicídio, 85,1%
eram negros. A violência letal tem cor e endereço certos no Brasil e acomete de
modo majoritário e extremamente desproporcional, jovens negros pobres e
periféricos. Além disso, em 2022 56,8% das vítimas de estupro (incluindo
estupro de vulnerável) eram negras e 56,2% das vítimas com até 13 anos eram
negras. As marcas do racismo aparecem ainda, na dinâmica da Justiça Criminal e
do Sistema Prisional. Em 2022, o Brasil superou a marca de 832 mil pessoas,
compondo a sua população carcerária (FBSP, 2023). No recorte racial, a
proporção de pessoas negras encarceradas alcançou 68,2% desse total (FBSP,
2023).
Por
outro lado, negros são minoria entre os ocupantes dos cargos mais altos das
polícias, cujas condições de trabalho bastante diferentes daquelas aqui
mencionadas. Conforme dados da SENASP/PNUD, em 2009, negros eram 48,9% dos
agentes da polícia militar, enquanto brancos somavam 48,7%. Já entre os
delegados, negros somavam 28% enquanto brancos somavam 70,9%. Nas polícias
militares, negros constituíam 58,1% dos praças, enquanto brancos somavam 39,6%.
Entre os oficiais, contudo, negros somavam 47%, enquanto brancos constituíam
51%. As desigualdades raciais inerentes à estruturação hierárquica e à
distribuição de cargos e salários das polícias vulnerabiliza negros porque são
eles que irão ocupar as posições mais baixas (inclusive no interior dos grupos
hierárquicos mais altos) e que aportam menos oportunidades no interior das
organizações policiais.
Não
é possível falarmos de segurança pública contornando a vulnerabilidade extrema
a que está sendo submetida à população negra. O caminho que nos levará a este
futuro ativamente antirracista é, portanto, o de superação das políticas
universalistas, que não promovem direitos de grupos demográficos distintos na
mesma medida justamente porque tratam como iguais aqueles cujas demandas e
necessidades são distintas.
Pela
Rede de Observatórios em Segurança Pública, ao menos cinco pessoas negras foram
mortas por dia em ações policiais, em 2021. Foram 3.290 mortes em operações
policiais na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São
Paulo. 65% dessas vítimas (2.154) eram negras. O estado de São Paulo que
apresentou quedas significativas nos últimos anos, devido ao uso de câmeras nos
uniformes dos policiais começa apresentar crescimento nesse ano de 2023. Dados
divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mostraram que a
letalidade policial aumentou no primeiro semestre de 2023. Comparado com o
mesmo período do ano passado, houve um crescimento de 9,4%. Nos primeiros seis
meses de 2023, foram 221 mortes policiais, contra 202 do primeiro semestre de
2022. O uso de câmeras nos uniformes dos agentes fez os números de mortes provocadas
por esses profissionais despencarem, mas a cor dos mortos seguiu inalterada:
69% eram negros. Uma pessoa negra é morta a cada 72 horas.
É preciso elevar o antirracismo para
além do mero discurso. Não é possível falarmos de segurança pública contornando
a vulnerabilidade extrema a que está sendo submetida a população negra.
Recortes anteriormente analisados mostram que é robusta a persistência do
racismo, a despeito de estarmos em um país que se enegrece a olhos vistos. A
população brasileira soma 56% de negros, indicando que mais pessoas passaram a
ser assumir pretas ou pardas nos levantamentos do IBGE (2023). Porém, ser negro
no Brasil ainda é fato que aprofunda desigualdades e, perversamente, exclui do
usufruto de direitos fundamentais. Não adianta achar que mais policiais mais
investimentos em segurança, mais viatura, mais armamento resolverá a nossa
percepção de segurança. Está tudo interligado, enquanto não entendermos que
nunca houve concessão, mas sempre luta em busca de uma árdua conquista o país
não vai ser para ninguém.
v Diretor da Divisão de Estudos e Monitoramento da
Coordenadoria da Atividade
Delegada – Secretaria de Governo Municipal da Cidade
de São Paulo
Formado em Gestão de Políticas Públicas pela USP
Mestre em Gestão e
Desenvolvimento Regional
Professor de
Cursinho pré-vestibular em São Paulo
Contato:
italocmantovani@gmail.com
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